Imparidades em clientes e a prevalência da realidade económica e financeira na contabilidade e não da fiscalidade
O risco associado ao recebimento de clientes, por concessão de crédito comercial, tem sido um foco práticas contabilísticas menos prudentes, a necessitarem de outras formas de gestão e acompanhamento bem como de fiabilidade e representação fidedigna na apresentação das demonstrações financeiras.
O risco associado ao recebimento de clientes, por concessão de crédito comercial, tem sido um foco práticas contabilísticas menos prudentes, a necessitarem de outras formas de gestão e acompanhamento bem como de fiabilidade e representação fidedigna na apresentação das demonstrações financeiras.
A gestão pelo risco é um paradigma que tem crescido ao longo dos anos, com especial relevância em tempos de crise, atentas as suas consequências, quer para empresas, quer para outras entidades sem finalidades lucrativas.
Ao conceder crédito nas suas operações comerciais, as empresas assumem riscos relacionados com a probabilidade de não recebimento.
Uma forma de mitigar tais riscos, usada frequentemente, por certas entidades, tem passado pela contratação de seguros de crédito, e outros mecanismos para transferir o risco para entidades especializadas.
Contudo, nas micro e pequenas entidades, a esmagadora maioria das empresas em Portugal, a tendência corrente é a de assumirem o risco, implementando, em alternativa, mecanismos de mitigação como limites de crédito, formas de financiamento, sem transferência de risco como o factoring, ou simplesmente aguardar que os clientes cumpram os seus compromissos.
A contabilidade deve, através das demonstrações financeiras, “proporcionar informação acerca da posição financeira, do desempenho e das alterações na posição financeira de uma entidade que seja útil a um vasto leque de utentes na tomada de decisões económicas[1]“, com vista, nomeadamente a “uma avaliação da capacidade da entidade para gerar caixa e equivalentes de caixa e da tempestividade e certeza da sua geração” avaliando, “por exemplo, a capacidade de uma entidade pagar aos seus empregados e fornecedores, satisfazer pagamentos de juros, reembolsar empréstimos e fazer distribuições aos seus proprietários[2]”.
No caso dos ativos, “os benefícios económicos futuros incorporados num ativo são o potencial de contribuir, direta ou indiretamente, para o fluxo de caixa e equivalentes de caixa para a entidade[3]”, sendo que “os gastos são reconhecidos na demonstração dos resultados quando tenha surgido uma diminuição dos benefícios económicos futuros relacionados com uma diminuição num ativo ou com um aumento de um passivo e que possam ser mensurados com fiabilidade[4].”
O caso das dívidas de clientes
São considerados ativos financeiros, entre outros, “qualquer ativo que seja, um direito contratual, de receber dinheiro ou outro ativo financeiro de outra entidade[5]”, onde se incluem as dívidas a receber de clientes.
Na sua mensuração, “quando um ativo financeiro é inicialmente reconhecido, uma entidade deve mensurá-lo pelo seu justo valor[6]”, que é “a quantia pela qual um ativo pode ser trocado ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não exista relacionamento entre elas.”
Após o seu reconhecimento inicial, são “exemplos de instrumentos financeiros que são mensurados ao custo amortizado: Clientes e outras contas a receber ou a pagar, bem como empréstimos bancários, uma vez que satisfaçam tipicamente as condições previstas no parágrafo 12[7]”.
No caso das micro entidades, “uma entidade deve mensurar os seus ativos e passivos financeiros ao custo, entendido como a quantia nominal dos direitos e obrigações contratuais envolvidos. Ativos financeiros relativos a contas a receber e a participações de capital são mensurados ao custo de aquisição, sujeito a ajustamentos subsequentes derivados de eventuais imparidades[8]”.
Imparidades em contas a receber
No caso das mico entidades, “para determinar se um ativo financeiro está ou não com imparidade, uma entidade deve rever a sua quantia escriturada, bem como determinar a sua quantia recuperável e reconhecer (ou reverter o reconhecimento de) uma perda por imparidade, designadamente em contas a receber (por exemplo, clientes)[9]”, sendo que “a evidência objetiva de que um ativo financeiro pode estar em imparidade é usualmente mostrada, por exemplo, pelas dificuldades financeiras ou quebra contratual do devedor ou do emitente, ou por cotação oficial inferior ao custo de aquisição[10].”
Não existe, assim, qualquer limitação temporal ou condição específica para a necessidade do reconhecimento da imparidade em contas a receber de clientes. Contudo, e muito importante é assegurar que os ativos não se encontram mensurados por uma quantia superior à quantia recuperável. Não o fazer é defraudar as contas e assim os utentes da informação.
Isso significa o uso de informação, como por exemplo:
- Histórico da relação com o cliente;
- Incumprimento sistemático nos prazos de pagamento acordados;
- Renegociação, com prazos mais alargados, das condições de pagamento, sem pagamento parcial;
- Quebra significativa de vendas;
- Identificação de incumprimento de outras dívidas comerciais, de impostos ou contribuições, ao pessoal (salários em atraso), ou de financiamentos com instituições de crédito;
- Tipologia de clientes do devedor, com base na análise de risco sistémico;
- Intenção anunciada do devedor em entrar num processo de falência, insolvência ou simples abandono da atividade.
Com base em informação adequada, os ativos representados por dívidas a receber de clientes, devem ser reduzidos para a quantia recuperável, se esta for inferior à quantia registada à data Balanço.
Esta informação é também utilizada para determinar indicadores financeiros e económicos como o prazo médio de recebimentos, a liquidez geral e reduzida, o fundo de maneio, mas também afeta o EBITDA, e assim o resultado do período, tal como os rácios de capital como a Autonomia Financeira.
As imparidades em IRC
Uma vez que o CIRC remete para o uso da contabilidade, em regra, a base de determinação do lucro tributável[11], é importante que se tenha em consideração que uma das condições a respeitar é que “a contabilidade deve estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo sector de atividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código”.
Para efeitos de IRC, “podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, as relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade[12]”.
Assim, para as imparidades serem consideradas custo em IRC, os créditos devem:
1. Estar relacionados com a atividade normal – é preciso ter em consideração que se considera atividade normal, nomeadamente a do seu objeto social;
2. Serem considerados de cobrança duvidosa – nas condições a seguir indicadas – e estarem evidenciados como tal na contabilidade – o que obriga a um registo contabilístico em conta específica de clientes de cobrança duvidosa; e
3. Estarem contabilizadas no período de tributação em que foram considerados de cobrança duvidosa, ou em períodos anteriores – aceita-se a dedução fiscal das imparidades que excederam os limites em anos anteriores.
Quanto à condição de “cobrança duvidosa”, consideram-se “aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos[13]”:
1. O devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto;
2. Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral; ou
3. Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.
Nunca serão considerados de cobrança duvidosa, para efeitos de IRC, os seguintes créditos[14]:
a) Sobre o Estado, regiões autónomas e autarquias locais ou aqueles em que estas entidades tenham prestado aval;
b) Cobertos por seguro, com exceção da importância correspondente à percentagem de descoberto obrigatório, ou por qualquer espécie de garantia real;
c) Sobre pessoas singulares ou coletivas que detenham, direta ou indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, mais de 10 % do capital da empresa ou sobre membros dos seus órgãos sociais, salvo nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1;
d) Sobre empresas participadas, direta ou indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, em mais de 10 % do capital, salvo nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1.
e) Entre empresas detidas, direta ou indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, em mais de 10 % do capital pela mesma pessoa singular ou coletiva, salvo nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1.
No caso da mora, a situação mais recorrente, o vencimento conta-se a partir da data do vencimento da fatura, e não da sua emissão, e há que obter evidência das diligências efetuadas como o envio de cartas, e-mails, mas também eventuais registos de tentativa de cobrança telefónica, aqui com prova testemunhal de quem executa o processo de cobranças.
A situação que tem originado maior distorção na contabilidade, tem a ver com a exigência de registo contabilístico, para efeitos fiscais, com base nos prazos a considerar na mora, que são definidos em intervalos de 6 meses e com percentagens progressivas para consideração da respetiva imparidade, ou seja, “o montante anual acumulado da perda por imparidade de créditos em mora não pode ser superior às seguintes percentagens dos créditos em mora[15]”:
1. 25 % para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses;
2. 50 % para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses;
3. 75 % para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses;
4. 100 % para créditos em mora há mais de 24 meses.
Estes prazos devem ser usados apenas para determinação do limite máximo fiscal para este tipo de imparidade, não se devido exigir que a contabilidade registe as imparidades com base nestes prazos. A especialização dos exercícios não se aplica este tipo de cálculos, que servem apenas para a determinação do limite máximo anual de aceitação fiscal, destes custos.
As quantias de imparidade registadas na contabilidade que excedam tal limite e que sejam adicionadas ao resultado contabilístico, para determinação do resultado tributável, num determinado ano, são dedutíveis nos anos seguintes.
Ainda que não sejam registadas, anualmente, as imparidades com base nestes prazos, estas serão sempre aceites a 100% quando ultrapassem os 24 meses da mora, pelo que a necessidade de um registo contabilístico com base na evolução anual destes prazos, que não é exigência do Código é, no mínimo, uma distorção do resultado económico do período, com destino a diversos utentes interessados, em benefício de uma única entidade.
[1] §12 da Estrutura Conceptual (EC) aprovada pelo Aviso n.º 8254/2015, de 29 de julho
[2] §15 da EC
[3] §52 da EC
[4] § 92 da EC
[5] § 5 da NCRF 27, aprovada pelo Aviso n.º 8256/2015, de 29 de julho
[6] § 10 da NCRF 27
[7] §16 da NCRF 27
[8] §17.3 do Aviso n.º 8255/2015, de 29 de julho
[9] § 17.6 do Aviso n.º 8255/2015, de 29 de julho
[10] § 17.7 do Aviso n.º 8255/2015, de 29 de julho
[11] Artigo 17.º do CIRC
[12] Artigo 28.º A, n.º 1, alínea a) do CIRC
[13] Artigo 28.º B, n.º 1 do CIRC
[14] Artigo 28.º B, n.º 3 do CIRC
[15] Artigo 28.º B, n.º 2 do CIRC